J-A 248, Set — Dez 2013, p. 179-187
Rui Mendes (texto) / João Láia (texto)/ Valter Vinagre (fotografia)
‘RESORTS’ EM PONTO-MORTO
Os resorts tomaram de assalto as grandes herdades do Sul do país. Na região do Alentejo, do litoral ao interior, estão em curso dezenas de projectos para grandes conjuntos turísticos. Entre as tipologias de turismo, o resort é a que permite um programa mais extenso e a conjugação de mais funções na mesma parcela territorial. É um modelo híbrido, entre as economias do trabalho e do lazer, o retiro para congressos empresariais e a prática do golfe, do hipismo e dos desportos náuticos. O Alentejo parece estar a ganhar novos sentidos e possibilidades, particularmente em torno do grande empreendimento do Alqueva.
Os arquitectos escolhidos para configurar esta transformação produziram imagens a condizer com os ambiciosos programas imobiliários em promoção. Em muitos casos, o modelo radical de transformação parece fazer-se sobre os escombros da cultura construtiva e do imaginário que ajudaram a construir. O que talvez tenha aberto caminho para refazer um mapa do Alentejo a partir da construção dos resorts foi um poder político, nacional e local, refém do modelo de desenvolvimento assente em “produtos financeiros”.
Hoje, a viagem aos resorts do Alqueva é uma experiência inquietante. Há um futuro prometido do qual, paradoxalmente, parece termos conseguido escapar (à custa da crise financeira), e são mais as dúvidas do que as certezas. Só ao desenhar o mapa dos resorts-fantasma programados para povoar o território do Alqueva, e ao sistematizar informação quantitativa, é que se tem a noção do que está em causa e se percebe o impacto que esta constelação de projectos aspira a ter na paisagem.
Em contraponto com a profunda alteração ecológica provocada pelo novo plano de água, surgiu a promessa de um novo destino turístico, capaz de dinamizar a economia da região. Como programar tal transformação sem fazer perigar as características regionais que lhe dão sentido? Poderão a arquitectura e o planeamento entrar mais cedo na cadeia de pensamento sobre as estratégias de transformação, em vez de ficarem sujeitos a um papel previamente imaginado?
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O PLANEAMENTO , HOJE , QUANDO TUDO PERMANECE INSTÁVEL
A construção da Barragem de Alqueva e o consequente enchimento do Grande Lago, concluídos em 2002, introduziram uma vasta transformação no sistema ecológico da região alentejana. Além disso, o alagamento à cota 152 levou a alterações profundas na estrutura cadastral e geográfica, dando origem a uma paisagem lagunar inusitada, com 1160 quilómetros de margens. São vários os documentos estratégicos nacionais, regionais e municipais, que têm vindo a construir a base legal para um desejo de transformação que teve origem no Plano de Rega do Alentejo, aprovado em 1957. São agora outros os instrumentos que vêm possibilitar novos usos, em particular o turismo, nas suas várias escalas e tipologias. Os resorts são apenas uma das tipologias desse tecido turístico.
Para compreender o fenómeno dos resorts é necessário fazer uma panorâmica dos instrumentos de gestão territorial em vigor, dos planos regionais aos municipais, culminando nos planos de pormenor que se aproximam da fase da construção. Contudo, mais do que um simples enquadramento legal, a sequência dos planos é operativa, na medida em que caracteriza os princípios de intervenção, preconiza índices e funções, perspectiva a elegibilidade a fundos de financiamento e invoca modelos de boas-práticas. Quer do ponto de vista conceptual – na composição formal e funcional –, quer do ponto de vista operativo, esta caracterização do território define em grande medida os limites da intervenção da arquitectura e um imaginário possível para a sua execução.
Em primeiro lugar, foi elaborado o PROZEA, Plano Regional de Ordenamento do Território da Zona Envolvente de Alqueva, que teve início em 1994 com o relançamento da barragem e se concluiu em 2002. Um dos seus objectivos era a “definição das actividades turísticas adequadas ao modelo de desenvolvimento da sub-região”. O plano alertava para a necessidade de recorrer a uma forte intervenção do sector público: na criação de uma rede de equipamentos e serviços de suporte, na promoção da imagem, no apoio financeiro a investimentos privados, na informação turística, na formação de recursos humanos. O recreio náutico e o golfe foram eleitos como produtos fundamentais dessa oferta turística, a par dos produtos tradicionais da região. O PROZEA também definiu eixos e áreas de localização preferencial de equipamentos, dimensões mínimas das propriedades e alguns critérios para transposição dos projectos para os planos de ordenamento municipal. A concretização dos empreendimentos turísticos ficou sujeita à elaboração de planos de pormenor e a um “modelo de ocupação” caracterizado por “edificações organizadas de forma concentrada ou nucleada, respeitando as características morfológicas e paisagísticas da área em que se inserem”. No entanto, não foram estabelecidos limites à dimensão dos empreendimentos (número de camas, densidade populacional, etc.).
Seguiu-se o Plano de Ordenamento das Albufeiras de Alqueva e Pedrógão (POAAP), também publicado em 2002, que se articulava com o PROZEA, mantendo como obrigatória a elaboração de planos de pormenor. O POAAP estabeleceu alguns limites à capacidade turística dos empreendimentos, depois bastante flexibilizados, com a sua revisão, em 2006. Estava subjacente ao plano a possibilidade de alienação de unidades de utilização turística para fins residenciais, factor determinante na viabilidade económica dos projectos, e que potenciou o sobredimensionamento dos empreendimentos.
Em 2010, foi aprovado o Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo (PROTA), que incorporou as estratégias definidas no Plano Nacional de Política de Ordenamento do Território (PNPOT) e articulou todos os instrumentos de planeamento em vigor. O PROTA revogou o PROZEA e estabeleceu normas turísticas bastante mais restritivas, aplicáveis a todo o Alentejo. Os Planos Directores Municipais (PDM) ficaram obrigados à definição de parâmetros urbanísticos em conformidade, sem os quais não é possível a aprovação dos conjuntos turísticos ou resorts, nem a elaboração de planos de pormenor ou de urbanização para esse efeito. Neste momento (e até à revisão dos PDM, que ainda não foi concluída em nenhum concelho do Alentejo) apenas podem ser aprovados empreendimentos turísticos isolados (tipologias de turismo no espaço rural). Os Planos de Pormenor ou de Urbanização que estavam em curso tiveram de ser concluídos e aprovados no prazo de um ano após a entrada em vigor do PROTA, sob pena de ficarem sem efeito (o prazo foi posteriormente prorrogado, terminando em Agosto de 2012).
O recurso aos PP, ou, em menor grau, aos PU, Planos de Urbanização, ambos da responsabilidade das autarquias, constituiu a principal forma de viabilizar empreendimentos turísticos que não tinham enquadramento nos PDM. Em muitos casos, estes PP colidiam com um planeamento que se pretendia mais estratégico. No entender de muitos projectistas e promotores, o conteúdo exigido pela lei aos planos de pormenor obrigava a um grau de definição excessivo, inviabilizando uma planificação mais estratégica e dinâmica. A aprovação do plano vinculava os futuros projectos a implantações, tipologias e faseamentos demasiado rígidos, face à imprevisibilidade do mercado do turismo. Por seu lado, os procedimentos de alteração eram relativamente complexos e morosos.
Os diferentes níveis de enquadramento legal e os processos complexos de legitimação urbanística das intervenções fizeram-se sob o desígnio do turismo como estratégia de desenvolvimento económico, e a classificação de muitos destes empreendimentos como Projectos de Interesse Nacional (PIN) conferiu-lhes um estatuto prioritário, à sombra do turismo, capaz de mobilizar a subversão do sistema de Ordenamento do Território.
As estratégias, orientações e normas definidas nos instrumentos de planeamento em vigor não foram suficientes para conter a componente residencial de muitos projectos. Os planos de pormenor turísticos viabilizaram o loteamento indiscriminado do solo rural, a construção dispersa e praticamente ilimitada de moradias de segunda habitação. Supunha-se que a especulação imobiliária e a afectação de fundos destinados ao desenvolvimento do turismo assegurariam a viabilidade económica dos empreendimentos. Esta dinâmica do turismo residencial acabou por subverter a estratégia territorial preconizada para o Alentejo, que se caracterizava pela contenção da edificação em solo rural. O colapso do sistema financeiro deixou estes investimentos em banho-maria.
UMA CIDADE IDEAL
O empreendimento da Cavandela ambicionava construir uma “cidade ideal” junto a Castro Verde, com base em ideias de desenvolvimento sustentável e aproximação à natureza. No terreno dominam a estepe, o olival, áreas de cerealicultura, pastoreio e montados, e o plano ocupa uma área substancialmente superior ao perímetro urbano da vila.
A proposta estrutura-se a partir de uma antiga tapada de caça (muro de taipa com dois metros de altura, inscrito num círculo com cerca de um quilómetro de diâmetro). A área de Reserva Agrícola Nacional que existe no seu interior foi utilizada para área verde urbana; o golfe e alguns núcleos de moradias localizam-se fora da tapada. A proposta integra um conjunto turístico com 565 hectares e um parque empresarial, com cerca de 40 hectares. O conjunto turístico, com 1522 unidades de alojamento e 4702 camas, engloba um hotel de cinco e outro de quatro estrelas, oito aldeamentos turísticos e vários equipamentos de animação, incluindo dois campos de golfe com 18 buracos, que coexistem com uma actividade agrícola. Além disso, não faltava uma panóplia de espaços de animação, lazer e comércio, desde o centro de promoção e venda de artigos locais até ao centro de interpretação do ambiente natural, passando pelo centro de espectáculos, pelo desporto em forma de ténis, circuitos de manutenção, hipismo e futebol, pelo corpo, desde o spa e o cardiofitness até à clínica de estética, e por inevitáveis equipamentos de apoio, da lavandaria à loja de jardinagem, da tabacaria aos serviços de segurança.
Nas apresentações públicas, o principal debate prendeu-se com a possibilidade de a Cavandela esvaziar Castro Verde, e, paradoxalmente, com a dúvida de as suas áreas estarem abertas à população ou serem de acesso restrito. O Plano de Pormenor foi aprovado em Setembro de 2011, mas não se encontra em vigor, uma vez que não chegou a ser publicado em Diário da República, porque a equipa responsável pela elaboração do plano não apresentou os formatos para publicação. O promotor não pagou os honorários, e o assunto está em tribunal.
MUDAR A AGULHA
Na contracurva de mais um grande desígnio nacional, os resorts, aparentemente, entraram em modo standby. Nos trajectos deste mapa encontramos resorts em vários estados, desde projectos que não chegaram a avançar assim como outros dos quais se duvida da viabilidade mas parecem avançar com timidez, como o Plano de Pormenor da Zona T4, a empreendimentos que foram bloqueados pelos próprios credores, como o Roncão d’El Rey. Neste último caso, um projecto PIN bastante mediatizado, o Governo determinou que o grupo promotor do projecto devolva parte dos 49,6 milhões de euros de incentivos financeiros já recebidos, em virtude da declarada insolvência das empresas promotoras e o “anúncio público da desistência do projecto”. Nas margens do Alqueva, a qualidade e o impacto do resultado a que estes empreendimentos aspiravam parecem já em desfasamento acelerado com os manifestos ecológicos que cruzam o nosso tempo. A dimensão avassaladora destas operações é particularmente evidente nas informações compiladas, de acordo com o Turismo de Portugal, a oferta global de alojamento turístico no Alentejo Central e Baixo Alentejo é de 190 mil camas (números de empreendimentos classificados e da oferta prevista em PU, PP e loteamentos).
As políticas oficiais de turismo, vertidas no Plano Estratégico Nacional do Turismo (PENT) veiculam o êxito do turismo de resorts, apresentando-o como um dos dez produtos de turismo “nos quais deverão assentar as políticas de desenvolvimento e capacidade da nossa oferta turística”. De modo a incentivar a adopção de melhores soluções para estes produtos, o Turismo de Portugal publicou em 2006 um estudo designado “Resorts Integrados e Turismo Residencial”, realizado, por encomenda, pela empresa catalã THR, Asesores en Turismo Hotelería y Recreación, S.A. O seu ponto de partida foi o estabelecimento das “oportunidades e requisitos do mercado”, estimando em 10% o crescimento anual da procura: “estas oportunidades são o resultado de um mercado em crescimento, no qual existem necessidades insatisfeitas, surgem novas necessidades, aparecem novos segmentos e a concorrência comete erros.” Se em 2005 o mercado europeu dos resorts atingiu os 30 milhões de pessoas, esperava-se que em 2015 atingisse os 60 milhões. Para além das banalidades especulativas do documento (do “edutenimento” às “palavras-chave”), as condições para ir a jogo eram claras: um resort integrado devia constituir um mundo de experiências em rede, confinado e em segurança, com auto-suficiência de gestão e dos produtos turísticos que oferece. Com previsões a dez anos, herdeiras do mundo de promoção do imobiliário, dos planos de marketing e das marcas globais, este documento estratégico terminava com a inclusão de (bons) exemplos, do Atlantis Paradise nas Baamas ao Sandals Royal Caribbean. A sua adequação ao contexto alentejano era, no mínimo, duvidosa. Na presença de modelos imobiliários que gastaram o território, valerá a pena correr os riscos que provocaram os dramas que hoje afligem o litoral algarvio?
Nestes processos, supostamente, a participação dos arquitectos processa-se em três momentos sequenciados que legitimam e vinculam as operações: 1) na elaboração de instrumentos de Ordenamento do Território que definem os critérios, índices, localizações e outros (estranhamente esta participação tem sido muito reduzida); 2) na criação dos planos, esquemas e modelos com forma e função; 3) na elaboração de projectos de edifícios das várias componentes do plano. De uma forma geral, as componentes financeiras e os modelos de investimento de cada projecto, com grande capacidade de persuasão política e administrativa, precederam a actividade de desenho e concepção de cada proposta. Com a insistência na autonomia do seu modelo relativamente ao contexto, fez-se recurso a empresas de arquitectura para a configuração de imagens capazes de revestir cada operação com um nível de qualidade e design inquestionáveis.
Decorridos que estão mais de dez anos sobre o início desta dinâmica de transformação, instala-se a dúvida sobre a capacidade de estes grandes investimentos, ou produtos financeiros, reactivarem uma economia produtiva ou um qualquer modo de vida que inclua os habitantes da região do Alqueva. A maioria dos resorts em projecto tem origem num tempo anterior à crise. O seu ímpeto transformador reflecte uma concepção de paisagem que contrasta com outras propostas de reactivação do mundo rural, onde a atenção aos processos e ao espírito do lugar, associados à qualidade da produção, fabricam excepções como factores económicos e turísticos diferenciadores. O território que vemos agora ser transformado por novas tipologias de turismo é o mesmo que passou pelas convulsões sociais e políticas da Reforma Agrária, das unidades colectivas de produção ao progressivo desinvestimento na produção agrícola que, desde os anos 80, tem promovido ciclos de incentivo ao abandono.
A elaboração de novos planos de pormenor turísticos no Alentejo está suspensa até à revisão dos PDM. A necessária integração dos critérios do PROTA, a alteração das condições socioeconómicas e o previsível fracasso destes modelos fazem antever o surgimento de outro tipo de propostas, onde a redução da capacidade dos empreendimentos, e especialmente da sua componente residencial, parece hoje uma evidência. Este momento de indefinição pode, e deve, ser usado para repensar as prioridades e as estratégias de transformação da paisagem, e também a posição dos arquitectos numa cadeia de produção que é, clara e inevitavelmente, mais vasta e ambiciosa do que a sua disciplina.
http://arquivo2.jornalarquitectos.pt/resorts-em-ponto-morto/